|    28 mar 2017

Um paradigma chamado Antonio Vivaldi

Nos dias 1 e 2 de abril, nossa Orquestra segue percorrendo o universo da música barroca. Neste segundo capítulo, nos encontramos com a obra inigualável de Vivaldi, personagem emblemática do período.

por Moacyr Laterza Filho *

 

Poucos compositores, entre os séculos XVI e XVIII, encarnaram tão integralmente a dualidade paradoxal do Barroco como Antonio Vivaldi. Não apenas sua música é barroca: ele também o é. Primeiro filho de sete irmãos, foi ordenado padre aos vinte e cinco anos de idade. No entanto, bem cedo foi dispensado das obrigações de rezar a missa, por supostos problemas de saúde, que alguns biógrafos associam à asma. Tais problemas, se é que havia, não o impediram de levar uma vida de intensa atividade por mais de sessenta anos, idade considerável para a época. Il Pretre Rosso (o padre vermelho), como era conhecido devido à sua vasta cabeleira ruiva, traço de sua família, Antonio Vivaldi transitava com desembaraço entre o sagrado e o profano: da clausura do Ospedale dela Pietà ao Teatro de Sant’Angelo; da leitura do breviário a se apresentar em público como violinista; do oratório à ópera, tão contraditório e paradoxal quanto a própria Veneza que o gerou e cultivou, sob as asas de seus carnavais e mascaradas.

 

A obra de Vivaldi é tão impressionantemente pródiga quanto o era a sua atividade: conhecem-se hoje cerca de quarenta óperas suas, mas o próprio Vivaldi declara ter composto mais de noventa; mais de cinco dezenas de obras religiosas; outro tanto igual de cantatas profanas, um sem-número de obras de câmara e mais de quinhentos concertos (!), com as mais diversas e inusitadas formações e propostas instrumentais, com as mais diferentes abordagens do estilo concertante, sendo que pouco menos da metade foi dedicada ao violino solista. Com isso, Vivaldi fixava, para o Concerto, o modelo paradigmático que os olhos futuros buscariam para reler, revisitar ou reelaborar.

 

Grande parte de sua obra, excetuando-se, obviamente, as óperas, foram compostas para suas pupilas do Ospedale dela Pietà e ali executadas. Quanto a isso, é mister uma nota. Essa instituição era uma das quatro do gênero que a Veneza do século XVIII abrigava. Tratava-se de uma espécie de orfanato para meninas pobres que geralmente tinham algum tipo de deficiência física. As meninas ali viviam em regime de claustro e recebiam educação completa. Nessa educação, a música tinha lugar privilegiado. Durante as apresentações, as jovens eram ouvidas sem que o público as visse: é que se cria que a visão dessas meninas malnascidas, marcadas por doenças como a varíola ou por defeitos irrecuperáveis, poderia prejudicar o prazer de ouvi-las.

 

O Ospedale della Pietà foi fundado em 1346, na Riva degli Schiavoni (Margem dos Escravos). Em 1703, ano de sua ordenação sacerdotal, Vivaldi é nomeado para ele como Maestro di Violino e mais tarde ali seria Maestro de’ Concerti. Se a proposta era antiga, Vivaldi logrou fazer da Pietà um dos maiores centros musicais da Europa e um dos exemplos pioneiros de educação inclusiva através da arte. Suas óperas, por sua vez, eram geralmente encenadas no Teatro Sant’Angelo, pequeno, obscuro e muito menos famoso que a Pietà. Em 1713 Vivaldi se torna administrador do teatro, o que lhe valeu contendas judiciais com as famílias Marcello (que trazia, entre seus filhos, dois importantes compositores: Benedetto e Alessandro Marcello) e Cappello, proprietárias do imóvel.

 

A densidade da música de Vivaldi se esconde sempre sob a máscara de uma melodia franca, acessível ou de arroubos virtuosísticos em suas obras instrumentais e vocais. Eis aí mais um aspecto paradoxal, tão barroco, deste grande mestre veneziano, cuja obra ainda hoje soa tão encantadoramente atual.

 

* Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

 

Para ampliar o conhecimento:

Ouvindo
CD Antonio Vivaldi – Stabat Mater; Nisi Dominus; Concerto in G minor | The Academy of Ancient Music – Christopher Hogwood, regente – James Bowman, contratenor (Decca – 2003)

CD Antonio Vivaldi – The four seasons | The Academy of Ancient Music – Christopher Hogwood, regente (L’oiseau-lyre – 2007)

 

Lendo
Nikolaus Harnoncourt – O Discurso dos Sons | Marcelo Fagerlande, tradução (Jorge Zahar Editor – 1998)

 

Assistindo
Stabat Mater, RV 621
Orquestra Virtuosi Di Praga – Martin Sieghart, regente – Marta Benackova, mezzo-soprano

Concerto em sol menor “para a Orquestra de Dresden”, RV 577
Sächsische Staatskapelle Dresden – Giuseppe Sinopoli, regente

As quatro estações, op. 8
Academy of St. Martin in the Fields – Kenneth Sillito, regente – Julia Fischer, violino

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