Concerto para piano

Samuel BARBER

Se pudesse haver alguma forma de definir a personalidade criadora de Samuel Barber, ela se basearia no fato de que a sua obra definitivamente não é passível de rotulações. Barber divide opiniões de apreciadores, críticos, musicistas e musicólogos, justamente por ser impossível enquadrá-lo, e à sua obra, em qualquer corrente estética ou tendência estilística preestabelecida: sua atitude diante da atividade de criação musical parece ser somente a de compor, dando vazão a uma individualidade criativa autônoma e vigorosa, desvinculada de compromissos escolásticos e de filiações estéticas ou ideológicas. Se isso responde a uma tendência geral que permeia os compositores norte-americanos de pelo menos os três primeiros quartéis do século XX (uma tendência a não assumir compromisso com linhas doutrinadoras dos processos de criação musical), não significa, porém, nenhum tipo de atitude política. Barber potencializa essa tendência de agir de forma livre, autóctone e individual na atividade da composição, sem desprezar as conquistas feitas pela música do século XX, sem negar a tradição musical do Ocidente, mas sem tampouco inaugurar qualquer nova escola ou nova linguagem: Barber simplesmente compõe. Mesmo o neorromantismo que se lhe tentou impingir – graças, talvez, à sua grande capacidade como melodista – destoa de suas harmonias por vezes extremamente complexas, sem receio de dar autonomia à dissonância. Destoa igualmente de algumas orquestrações arrojadas, às vezes quase experimentais, e de sua abordagem, em algumas obras, da forma musical, livre de esquemas pré-determinados.

 

É exatamente por isso que se podem encontrar, no todo de sua produção, obras tão diversas e contrastantes, como, por um lado, os devaneios rapsódicos de Knoxville, e, por outro, o Concerto para piano e orquestra. Não é de causar estranhamento, portanto, que, graças a essa postura de liberdade, já na segunda metade do século XX, sem nenhuma pretensão reacionária, Barber se volte para uma forma musical que nasce no Barroco Seiscentista, segue sendo cultivado pelos clássicos vienenses e continua acalentado com cuidado pelo Romantismo do século XIX. Para Barber não importa ser sempre e invariavelmente inovador, nem tampouco promover uma chamada à ordem: importa-lhe tão somente compor.

 

O Concerto para piano e orquestra, op. 38 foi encomendado a Barber pela editora G. Schrimer, em função do seu centenário de fundação. Estreado em 1962, pela Orquestra Sinfônica de Boston, conduzida por Erich Leinsdorf, e tendo como solista John Browning, essa obra valeu ao compositor, no ano seguinte, o seu segundo prêmio Pulitzer (o primeiro tendo-lhe sido conferido por sua ópera Vanessa, em 1958). O trabalho de composição dessa obra teve início em março de 1960 e desde o início Barber tinha intenção de fazer John Browning o solista da estreia. Assim, muitos dos aspectos especificamente pianísticos deste concerto levaram em conta, em seu processo de elaboração, as próprias especificidades de Browning como musicista. Antes do final desse mesmo ano, os dois primeiros movimentos do concerto já estavam concluídos, mas o terceiro movimento só foi finalizado quinze dias antes de ser estreado. Esse último movimento conta com uma história curiosa: ao que parece, de acordo com Browning, o tempo desse terceiro movimento, tal como Barber o indicara, era inexequível. O compositor se recusou, porém, a fazer-lhe qualquer revisão, até que o lendário pianista Vladimir Horowitz, tendo feito uma apreciação desse trecho da obra, acabou por endossar a opinião de Browning.

 

Formalmente, o concerto op. 38 não escapa aos esquemas tradicionais do concerto clássico, contando com três movimentos distintos. Uma perspectiva cíclica, à maneira de românticos como César Franck, parece funcionar como elemento de unidade da obra, levando temas do primeiro movimento (sempre retrabalhados) às outras partes. O segundo movimento traz curiosamente similaridades, tanto na orquestração quanto na elaboração melódica, com as Noites nos Jardins de Espanha, obra de Manuel de Falla composta em 1916. O terceiro movimento, extremamente brilhante, explora de maneira vigorosa as habilidades técnicas do solista. Sem ser inovadora nem reacionária, essa obra é exemplo claro de uma imaginação criativa que fez da liberdade de expressão a sua própria originalidade.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.

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