Concerto para piano nº 21, K. 467

Wolfgang Amadeus MOZART

A figura musical de Wolfgang Amadeus Mozart sempre foi alvo de comentários hiperbólicos, seja no que diz respeito à sua obra, seja no que concerne ao seu talento invulgar, exibido ao mundo por seu pai, Leopold Mozart, como prodígio quase sobrenatural. De fato, não é raro que tais comentários, sobretudo nas vozes laicas, se restrinjam a esse talento e à admiração pelo fato de que em tenra idade o compositor tenha sido capaz de criar obras de perfeição admirável. No entanto, mesmo restritos a essa particularidade, insignificante, se posta ao lado da própria obra, partem sempre do impacto estético que a própria música de Mozart promove e que, por ela mesma, leva às reflexões mais abstratas e mais elevadas. O gênio musical de Mozart se afirma em si mesmo, como espírito musical puro, cuja ambição maior é estar isento de qualquer ideologia e não significar nada além do que a si próprio e à linguagem que o expressa.

 

Por isso mesmo, a exegese de sua biografia revela e explica muito pouco de sua música, a não ser que se queira enxergar uma manifestação encarnada da própria contradição humana. Embora a sua música incite ao sublime, fora dela, o interesse de Mozart, como figura humana, parece concentrar-se apenas em futilidades: desde pentear cuidadosamente a sua vasta cabeleira loira (de que muito se orgulhava) diariamente às seis horas da manhã, a preocupar-se com maiores ou menores aplausos que uma ou outra de suas óperas tenha recebido na estreia; de exasperar-se com as pequenas dificuldades cotidianas (o desleixo dos empregados, o atraso dos correios) a preocupar-se com sua baixa estatura. Na maior parte de seus escritos, ele sempre se refere às suas obras de uma forma banal e por vezes anedótica, quando não comenta algum detalhe de natureza mais operacional, por assim dizer. Mozart não teve uma relação muito tranquila com a vida, e sua obra parece dizer o contrário. Não é, portanto, em sua biografia que se pode procurar compreender a música de Mozart, mas tão somente nela mesma.

 

Dessa forma, também por isso se pode compreender que Mozart e sua obra não mudaram nem nunca tiveram a intenção de mudar o curso da História da Música. Tampouco o definiram. Ele se contenta em dominar magistralmente as técnicas, os gêneros e as formas aprendidas, inclusive a linguagem contrapontística, que transparece não apenas em sua música sacra, mas também – embora não raro dissimulada – em muito de suas óperas e de sua música instrumental. Suas eventuais ousadias, frutos de uma inventividade inesgotável, nunca querem expressar uma ideologia, como em Beethoven. Sua música e sua linguagem não querem significar nada além do que a si próprias.

 

Compositor dramático por excelência, é na ópera e na música sacra que sua linguagem se revela em grande plenitude. No entanto, mesmo aí a linguagem musical parece estar acima de quaisquer diretrizes que o texto lhe possa impingir: em carta a seu pai, escrita em 1781, Mozart afirma que “numa ópera, é absolutamente necessário que a poesia seja filha obediente da música”. Fora daí, a despeito de sua música de câmara, das quarenta e uma sinfonias e de quase duas dezenas de sonatas para piano, suas obras-primas são sem dúvida os concertos para piano e orquestra, dos quais compôs quase trinta, ao longo de sua curta vida.

 

Composto em 1785, o concerto em dó maior K. 467 sucedeu, com um intervalo de menos de um mês, o impressionante concerto em ré menor K. 466. Embora seja atualmente um dos concertos mais populares de Mozart, principalmente devido ao seu segundo movimento, não gozou, quando de sua composição, da aprovação de seu pai, que o classificou como “surpreendentemente difícil”, tanto no que lhe diz respeito à execução quanto à linguagem. Obra brilhante e de vivos contrastes internos, neste concerto Mozart parece transportar abertamente para o gênero instrumental muito da dramaticidade operística que dominava com maestria. Apesar disso, tanto neste concerto, quanto no seu precedente, e no concerto em Lá maior, K. 488, que o sucedeu, Mozart reitera esse lado abstrato da linguagem musical, que, por não querer significar nada além do que ela própria, conduz às reflexões mais elevadas e induz a transcendência.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.

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