Escales

Jacques Ibert

Além dos estudos regulares (1910-1914) no Conservatório Nacional de Paris, a formação de Jacques Ibert deve-se, sobretudo, aos ensinamentos particulares de André Gédalge, cujos cursos priorizavam a tradição musical francesa e resumiam-se na supremacia da linha melódica, na clareza de orquestração e na solidez formal. Nessas classes, Ibert teve como colegas A. Honegger (1892-1955) e D. Milhaud (1892-1974), integrantes do Grupo dos Seis. Em 1919, após a Primeira Guerra, o compositor obteve o cobiçado Grande Prêmio de Roma, reconhecimento que, em 1905, fora negado a seu compatriota M. Ravel (1875-1937). Anos mais tarde, em 1938, Ibert assumirá a direção da Villa Médicis, instituição onde estagiavam os vencedores desse prêmio e definida por C. Debussy (1862-1918), meio século anteriormente, como “uma máquina de fazer tédio”. Tais dados biográficos poderiam sugerir, por um lado (pelos laços que o aproximaram de Honegger e Milhaud) a adesão de Ibert aos postulados vanguardistas dos Six, ou, por outro caminho (levando-se em conta seu sucesso oficial), a sujeição a um academismo estéril. Entretanto, o compositor de Escales não se ateve a nenhum preconceito estético; o Neoclassicismo de Jacques Ibert, marcado pela ciência e domínio do ofício, sinaliza, em meio ao emaranhado de tendências musicais da primeira metade do século XX, uma continuidade segura para as características mais relevantes da tradição musical francesa.

 

O compositor transitou por vários gêneros: compôs óperas, duas sinfonias, três concertos, seis poemas sinfônicos e dez suítes extraídas de obras cênicas, além de um quarteto de cordas e um quinteto de sopros, entre outras obras. Conhecendo bem os recursos particulares dos instrumentos, sua orquestração caracteriza-se pela diferenciação dos naipes, usados como blocos distintos, coloridos de tons puros, em um jogo de grande luminosidade e clareza sonora. Jacques Ibert escrevia diretamente para a orquestra, sem necessidade das habituais transcrições para o piano e, em 1925, redigiu um Curso de Orquestração bastante elogiado. Foi o primeiro compositor europeu a compor para o cinema falado, completando sessenta trilhas sonoras (com destaque para o Don Quichotte, de Pabst, e o Macbeth, de Orson Welles).

 

Escalas, a mais popular das obras de Ibert, foi escrita entre 1921 e 1922, como trabalho obrigatório do então pensionista da Villa Médicis. Trata-se de uma suíte orquestral cujos movimentos, por sugestão do editor, receberam títulos alusivos a um cruzeiro do compositor pelo Mediterrâneo — na Costa Italiana, na Tunísia e na Espanha. A música, deliberadamente pitoresca e ilustrativa, explora motivos populares dos locais retratados. Assim, a primeira escala, de Roma a Palermo (Calme), inicia-se com um tema inspirado no folclore italiano, exposto pela flauta, depois pelo oboé, sobre um fundo noturno de cordas e harpas. Um accelerando, ritmado por rufos de pandeiros, sugere um belo amanhecer; e a viagem continua, com o retorno ao andamento anterior. De Tunis a Nefta (Modéré très rythmé), um oboé apresenta uma melodia árabe, sobre uma escala oriental. Finalmente, em Valência (Animé), a Espanha revela-se banhada de luz, em uma sequência rapsódica de danças populares.

 

Escales estreou em Paris, em 1924, na sala Gaveau, sob a direção de Paul Paray.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

anterior próximo