Sinfonia nº 2 em dó menor, “Ressurreição”

Gustav MAHLER

(1888/1894)

Instrumentação: 2 piccolos, 4 flautas, 4 oboés, 2 cornes-ingleses, 2 requintas, 3 clarinetes, clarone, 4 fagotes, 2 contrafagotes, 10 trompas, 10 trompetes, 4 trombones, tuba, 2 tímpanos, percussão, 2 harpas, órgão, cordas.

 

A Sinfonia é um abismo e causa vertigem buscar o fundo. Essa paráfrase da afirmação de Wozzeck sobre o homem, no segundo ato da ópera de Alban Berg, poderia servir de epígrafe para um estudo das sinfonias de Gustav Mahler. No entanto, a obra mahleriana apresenta uma contrapartida a essa reflexão. Se, por um lado, o mergulho no insondável da própria personalidade e a reação pessoal às vicissitudes, espelhados em sua música, levam-nos a ressaltar o aspecto autobiográfico de sua obra sinfônica, por outro o compositor ultrapassa os limites do pessoal e atinge um terreno de comunhão que diz respeito a todos nós e perscruta os mistérios da transcendência.

 

Compositor austríaco, de origem boêmia e de ascendência judaica, Mahler nasceu em Kaliste e faleceu em Viena. “… três vezes apátrida. Como natural da Boêmia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro. Por toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado”, declarou. Sua vida de trabalho intenso foi dedicada, em boa parte, a uma prestigiosa carreira de regente, que o levou a ocupar importantes cargos em capitais europeias, em especial o de Diretor da Ópera de Viena e o de regente titular da Orquestra Filarmônica da capital austríaca. O trabalho como intérprete refletiu-se no exercício da composição, como podemos verificar através das inúmeras revisões em suas obras, bem como através da minúcia com que indicava as articulações, a dinâmica e as cuidadosas indicações de andamento e de caráter. Sua invenção orquestral, integrada organicamente aos demais elementos composicionais, não conhece limites e explora, com verdadeira atitude investigativa, novas sonoridades, extraindo de cada instrumento ou naipe uma força expressiva, um páthos que o distingue como o compositor que fez o elo entre a tradição romântica e novas linguagens do século XX. O apátrida encontrou seu lugar no curso da História e a aurora que ilumina suas novas paisagens sonoras emerge desse ocaso do Romantismo e desperta a verdadeira veneração de que foi objeto por parte dos músicos da Segunda Escola de Viena. O virtuose da regência, no entanto, reservava para o compositor apenas as férias de verão, dado surpreendente quando consideramos o conjunto de sua obra, particularmente as dimensões de sua produção sinfônica – nove Sinfonias e amplos esboços para uma décima.

 

Homem de grande cultura filosófica e literária, ele mesmo autor dos poemas de algumas de suas Canções, Mahler vale-se da voz, em suas sinfonias, a partir da segunda. Aqui, o texto do quarto movimento, Urlicht (Luz Original), foi extraído de uma coletânea de poemas populares – Des Knaben Wunderhorn (A trompa maravilhosa do menino) – publicada no início do século XIX. O final foi composto a partir de um hino de Klopstock, Auferstehn (Ressurreição), que havia impressionado o compositor, de modo especial, durante os funerais do pianista e regente Hans von Bülow. O amplo diálogo que a Segunda Sinfonia estabelece com elementos característicos do universo mahleriano não para, entretanto, no emprego dos textos. Na obra encontramos, por exemplo, um dos arquétipos da música de Mahler, a marcha, de cores trágicas e fúnebres no primeiro movimento, onde alusões ao Dies Irae gregoriano convivem com passagens de tons mais serenos, em um tecido composicional de fortes contrastes, também característico da linguagem do compositor. O segundo movimento alterna o Ländler austríaco e a atmosfera dramática de seções intermediárias. No terceiro, Mahler dá nova forma a um Lied composto sobre texto do ciclo Wunderhorn: Des Antonius von Padua Fishpredigt (A prédica de Antônio de Pádua aos Peixes). Luciano Berio referiu-se à “história da música” que esse Scherzo nele despertava e o empregou como espinha dorsal para o terceiro movimento de sua Sinfonia, integrando-o a referências a trechos de obras de diversos outros compositores. Após a afirmação de fé do quarto movimento (“Venho de Deus e quero retornar a Deus”), o movimento conclusivo lembra-nos o caminho já percorrido, mas, em seu terço final, as reminiscências são transfiguradas. Texto e música conclamam o ouvinte a participar da mensagem desta Segunda Sinfonia e permitem experienciar, para além das tristezas e alegrias cotidianas, um caminho fé e de esperança, de Vida, Morte e Ressurreição.

 

Oiliam Lanna
Compositor e regente, Doutor em Linguística (Análise do Discurso), professor da Escola de Música da UFMG.

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