Sinfonia nº 2, “Dupla”

Henri DUTILLEUX

(1957)

Instrumentação: 2 piccolos, 3 flautas, 3 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, clarone, 3 fagotes, contrafagote, 2 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, celesta, cravo, cordas.

 

Fruto de um trabalho persistente e de qualidade excepcional, a música de Henri Dutilleux ocupa, tanto para a crítica mais tradicionalista como para as vanguardas, lugar privilegiado no cenário contemporâneo. Seu catálogo, não especialmente numeroso, é composto de obras-primas, cada uma meticulosamente pensada e cinzelada com refinamento. Seu reconhecimento, entretanto, ocorreu lentamente – talvez por causa do temperamento independente e recluso do compositor, que sempre se negou a participar de movimentos e grupos estéticos.

 

A Sinfonia nº 2, com o sugestivo título Le Double, foi encomendada pela Fundação Koussevitzky para as comemorações do 75º aniversário da Orquestra de Boston. Iniciada em 1957, foi concluída dois anos mais tarde e estreada em 11 de dezembro de 1959, sob a regência de Charles Münch. A linguagem dessa Sinfonia é ainda frequentemente tonal ou modal, embora também utilize procedimentos dodecafônicos (o serialismo era, então, a tendência dominante na França). Sua estrutura constrói-se sobre a divisão da orquestra em dois grupos instrumentais. Um grupo menor, de 12 músicos, é separado do restante da orquestra, formando um semicírculo em torno do maestro. Essa divisão remete evidentemente ao modelo barroco do Concerto Grosso; ou, ainda, a instrumentação do grupo menor poderia sugerir uma big band jazzística – mas a música evita qualquer analogia e foge de esquemas neoclássicos. Os dois grupos unem-se, afrontam-se ou se sobrepõem em rico e complexo processo especular de polirritmia e de politonalidade. Jogo de espelhos: dois personagens em um só, sendo um o reflexo do outro – o sósia, o duplo, le Double.

 

O processo de variação domina a partitura atuando em fragmentações contínuas e reincidentes que, lenta e progressivamente, conduzem à afirmação temática. O movimento inicial, Animato ma misterioso, apresenta forma ternária. O Andantino sostenuto possui particular encanto poético e, nele, as variações tornam-se mais facilmente perceptíveis. O Allegro fuocoso – calmato conclusivo divide-se em três seções: a tumultuada repetição do tema (fuocoso), um stretto animado e uma ampla coda (calmato).

 

Para Dutilleux, o processo criador pode transformar-se em um ritual, uma forma de cerimônia religiosa, pois implica uma epifania – quando uma determinada ideia se revela luminosa e, por algum segredo, se impõe sobre as outras. Assim, o artista convive com o sagrado, o mistério, a magia; prioriza a emoção e cultiva a curiosidade pelo inusitado. No plano técnico, Dutilleux valoriza o trabalho artesanal, com a preocupação de inserir o pensamento musical em uma estrutura bem definida (ainda que contrária a qualquer organização pré-fabricada). E ressalta a necessidade absoluta da escolha e da economia dos meios, sempre visando o que se pode chamar a Alegria do Som.

 

Aos dezessete anos, incentivado pelo avô materno, organista e professor de música, Dutilleux ingressou no Conservatório de Paris, onde obteve os primeiros prêmios de Harmonia, Contraponto e Fuga. Em 1938, ganhou o Prêmio de Roma, mas ficou poucos meses na Villa Médicis. Dez anos depois, em 1948, destruiu suas composições anteriores e publicou como seu opus nº 1 a Sonata para piano.

 

A grande sensibilidade harmônica, a busca de novos recursos expressivos e o gosto detalhista de sua orquestração fazem de Dutilleux um herdeiro direto da tradição de Dukas, Debussy e Ravel. Outras influências para sua música se referem a obras literárias ou pictóricas que lhe servem frequentemente de fonte poética, embora o compositor se declare avesso a qualquer vestígio de mensagem ou programa. Assim, ao dar o subtítulo de A noite estrelada para Timbres, Espaço, Movimento (1978), Dutilleux não tentou reproduzir sonoramente a pintura homônima de van Gogh, apenas reviver e prolongar suas impressões, lembranças e ressonâncias oníricas. No caso dos concertos, as fontes são literárias. O Concerto para violino, L’arbre des songes (1985), é uma meditação sobre o silêncio, o tempo e a memória, musicalmente traduzida em um estudo da percepção de estratos temporais múltiplos, conceito elaborado pelo compositor após a leitura de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. Quanto ao Concerto para violoncelo, Tout un monde lointain, Dutilleux inspirou-se em Les fleurs du Mal de Charles Baudelaire, fascinado pelo universo do poeta e seu conceito de evasão, a grande viagem à procura do desconhecido – realizada musicalmente pelo instrumento solista.

 

Em 1945, Dutilleux foi nomeado diretor responsável pelas Ilustrações Musicais da Radiodiffusion Française, cargo que ocupou até 1963 e que lhe permitiu um convívio enriquecedor com diversas tendências artísticas. Em 1961, lecionou Composição na École Normale de Musique (a convite de Alfred Cortot); depois, entre 1970 e 1984, no Conservatório de Paris.

 

Aos 89 anos, em 2005, Dutilleux tornou-se o terceiro compositor francês (depois de Olivier Messiaen e Pierre Boulez) a receber o cobiçado prêmio Ernst von Siemens, pelo conjunto de sua obra.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.

anterior próximo