Te Deum, op. 103

Antonín DVORÁK

(1892)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

 

O Te Deum, hino cristão cujo poema data do século IV, é um dos chamados hinos ambrosianos, por ter sua autoria tradicionalmente atribuída a Santo Ambrósio e Santo Agostinho: sua história se associa ao evento do batismo deste último por Santo Ambrósio, na Catedral de Milão, no ano 387. Porém, como muito das artes na Idade Média, a real autoria desse hino é incerta. Há, por exemplo, quem a atribua a Santo Hilário, ou a Nicetas, bispo de Remesiana, antiga cidade da Dácia (província do Império Romano que hoje corresponderia mais ou menos à Romênia). Além disso, os versos finais parecem ter sido acrescentados mais tarde e se constituem de excertos de alguns salmos. Incorporado desde muito cedo ao ofício católico da Liturgia das Horas e posteriormente também incluído nos hinários das igrejas anglicana e luterana, além de algumas outras confissões cristãs, seu texto é um hino de ação de graças, entoado em momentos festivos e solenes. A música que se fez para esse antigo poema religioso costura toda a História Ocidental: desde o Cantochão até Benjamin Britten. De Thomas Tallis a Bruckner. De Lully, passando por Haydn e Mozart, a Verdi.

 

Não é de se estranhar, portanto, que também Dvorák tenha composto seu próprio Te Deum. No entanto, pode-se questionar por que um compositor cujo nome e linguagem estão tão intimamente ligados a um braço do Romantismo e que lança mão de materiais sonoros nacionais ou regionais tenha, em algumas de suas principais obras, utilizado justamente a temática religiosa: além de algumas missas, estão dentre as obras mais importantes de Dvorák o Stabat Mater, o oratório Santa Ludmila, o Réquiem op. 89 e o Te Deum op. 103.

 

O fato é que Dvorák e sua linguagem encerram, cada um, sua própria dualidade. Tendo se mudado para Praga em 1857, matricula-se na renomada Escola de Órgão dessa cidade. Mais tarde, concluídos seus estudos, pôde trabalhar como violista na orquestra do Teatro Nacional Tcheco, o que lhe valeu a oportunidade de estar em contato com Bedrich Smetana, pedra fundamental do nacionalismo musical tcheco. Em 1874, porém, abandonando o posto na orquestra, assume o cargo de organista da Igreja de Santo Adalberto. Foi justamente com esse cargo que ele pôde se dedicar mais à composição, e foi essa a época em que seu estilo e sua linguagem tomam suas feições definitivas: seu olhar se volta, então, com maior cuidado para o folclore de sua terra.

 

Assim, por um lado, é justamente trabalhando como músico a serviço da Igreja que Dvorák logra consolidar sua linguagem e se firmar como compositor. Por outro lado, ele vive em um momento de grande efervescência política: havia três séculos que a Boêmia e suas vizinhas, a Morávia e a Eslováquia, faziam parte do Império Austro-Húngaro. A partir de 1860, porém, a hegemonia de Viena começa a enfraquecer, o que fez crescer um clima propício às manifestações de caráter nacionalista, inclusive nas artes. Toda a formação musical sistemática e acadêmica de Dvorák tem uma importante base germânica, fundamentada na ainda presente hegemonia do Império Austríaco. Mas muito da sua originalidade como compositor (sem querer reduzir os devidos méritos de sua inventividade) deve-se à mescla dessa base com o material musical e sonoro que ele encontra no folclore de sua terra. Nessa mescla raramente há citações. Há um folclore filtrado em elementos essenciais que fazem o rejunte de uma linguagem genuinamente romântica.

 

Dessa forma, se em sua música há obras de caráter confessadamente nacional (Danças Eslavas, Duetos Morávios, o Hymnus op. 30, ou a própria Sinfonia nº 1, intitulada “Os sinos de Zlonice”), também em sua música religiosa a presença do elemento nacional transparece, a despeito da temática.

 

O Te Deum, op. 103 foi composto ainda em solo europeu, pouco antes de Dvorák fixar residência nos Estados Unidos. Essa obra foi-lhe encomendada em 1891 por Jeanette Thurber, fundadora do Conservatório de Música de Nova York, para comemorar os quatrocentos anos de descoberta da América. Em 1892 o compositor, a convite de Mrs. Thurber, muda-se para aquela cidade, a fim de assumir a direção do recém-fundado Conservatório. Foi em Nova York, portanto, que se deu a estreia do Te Deum, op. 103, em 21 de outubro de 1892, no primeiro concerto de Dvorák naquela cidade. Tanto esta quanto outras obras do compositor foram ali muito bem aceitas pelo público e pela crítica.

 

De proporções menores e caráter relativamente mais intimista do que o Stabat Mater ou do que o Réquiem, o Te Deum de Dvorák tem as feições de uma cantata para barítono, soprano, coro e orquestra. No entanto, assim como naquelas duas primeiras obras e no oratório Santa Ludmila, no Te Deum Dvorák revela uma espécie de misticismo que se traduz aqui, na sua música, pela sutil e estilizada introdução de elementos da devoção musical folclórica de sua terra.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

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