A Cavalgada das Valquírias

Richard WAGNER

Ironicamente, a despeito de seu ideal de uma arte sintética, que unisse, em uma única manifestação, música, drama e palavra, Richard Wagner e sua música se tornaram conhecidos, em tempos mais recentes, principalmente pelos trechos sinfônicos de suas óperas. No entanto, esses excertos preservam tamanha coesão interna, que, ainda que isolados, não se desvirtuam esteticamente das proposições estéticas e linguísticas, por assim dizer, lançadas por Wagner. Com isso, foram beneficiados o repertório sinfônico e o público em geral: a este, nem sempre disposto a ouvir integralmente obras tão extensas e complexas como Parsifal ou Tristão e Isolda, foi dada a oportunidade de travar contato com um aspecto importante da linguagem da fase final do Romantismo. Àquele foi dada justamente a oportunidade de incluir nos concertos esse mesmo repertório, levando-o para além dos espaços um tanto restritos e “sacralizados” da ópera wagneriana, cujo maior exemplo são os espetáculos do Festival de Bayreuth. Assim integrados ao repertório sinfônico, caíram no gosto do público trechos como a Abertura de Tannhäuser, o Prelúdio de Tristão e Isolda (frequentemente sucedido, nos concertos sinfônicos, pela Morte de Isolda, ária final da ópera), a abertura de Os Mestres Cantores de Nuremberg e A Cavalgada das Valquírias.

 

À parte a famosa Marcha Nupcial (na verdade se trata de um coro nupcial inserido num momento apoteótico de Lohengrin, ópera de 1850), hoje torturada – em cerimônias de casamento do mundo todo – pelas mais bizarras formações instrumentais, o trecho instrumental das óperas de Wagner mais explorado pela mídia em tempos recentes talvez seja justamente A Cavalgada das Valquírias. Essa peça abre o terceiro ato de A Valquíria, segunda ópera de uma tetralogia intitulada O Anel do Nibelungo, constituída por: O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses.

 

Composto entre 1848 e 1874, O Anel do Nibelungo é um marco definidor da linguagem wagneriana. Aí Wagner abraça definitivamente as propostas preconizadas em Ópera e Drama, grande ensaio publicado em 1851, em que ele define o que chama de “trabalho artístico do futuro”, no qual música, poesia e artes visuais deveriam se fundir numa única manifestação, a que ele nomeia “Drama Musical”. Assim, Wagner toma por base para o enredo do Anel (saga épica cujo libretto ele mesmo escreve) elementos da mitologia nórdica e germânica, cujo centro narrativo trata da luta pela posse de um anel mágico, forjado pelo anão Alberich, feito de ouro do Rio Reno.

 

No entanto, mais do que concretizar suas ideias a respeito do “Drama Musical”, O Anel do Nibelungo é, para Wagner, o meio em que ele articula definitivamente aspectos fundamentais de sua linguagem. A técnica do leitmotif é aí ampla e explicitamente empregada, a orquestração toma novas dimensões (com a criação, inclusive, de novos instrumentos, como a “trompa wagneriana”) e o trabalho com o sistema tonal passa a ser de tal forma arrojado, que há quem diga que não se trata mais de tonalidade, mas de regiões tonais. Se esse tipo de trabalho, em que se explora a instabilidade do cromatismo, já havia sido levado exponencialmente a termo em Tristão e Isolda (1865), é explorado também nas óperas do Anel, como elemento já filtrado e transformado em fundamento da própria linguagem wagneriana, agora amadurecida.

 

A Valquíria foi concluída na primavera de 1856. Nessa segunda ópera do Anel é que se começa efetivamente a desenrolar o enredo da saga. Em A Valquíria o drama gira em torno do desentendimento da valquíria Brünhilde com o pai Wotan, chefe dos deuses, quando ela hesita em obedecer a uma ordem do pai. Na mitologia wagneriana, as valquírias eram encarregadas de levar as almas dos guerreiros mortos para o Walhalla. Assim, abrindo o terceiro ato da ópera, A Cavalgada das Valquírias é dotada, na acepção wagneriana de drama musical, de certos elementos descritivos que procuram evocar a imagem dessas donzelas guerreiras, no papel que elas cumprem dentro da mitologia do Anel.

 

Também no terceiro ato, encerrando a ópera, estão a tocante ária hoje conhecida como O Adeus de Wotan e outro excerto instrumental, conhecido como A Música do Fogo Mágico. Nessa cena final, Wotan, compadecido da sorte de sua filha preferida, transformada em mortal, beija os olhos de Brünhilde e a coloca em um sono mágico. Ele ordena que Loge, o semideus nórdico do fogo, acenda um círculo de chamas que a irá proteger e então, cheio de tristeza, se retira. À parte a beleza da música e da cena, esse trecho é particularmente importante na composição do Anel porque aí é introduzido um leitmotif que mais tarde será identificado com a figura de Siegfried.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.

anterior próximo