Sinfonia nº 15 em Lá maior, op. 141

Dmitri SHOSTAKOVICH

(1971)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, celesta, cordas.

 

As quinze sinfonias de Shostakovich, definitivamente incorporadas ao repertório das grandes orquestras, representam para o grande público a feição moderna desse gênero essencialmente clássico. Entretanto, tal reconhecimento não transformou o compositor russo em um músico internacional, no sentido em que o são seus conterrâneos Stravinsky e Prokofiev. Shostakovich continua sendo considerado o compositor “oficial” da URSS. De fato, sua obra liga-se diretamente ao movimento político-cultural da União Soviética – de Lenin até a política de “degelo” de Kruschev, passando pelos longos anos da implacável censura stalinista. Com um ciclo heroico de grandes obras patrióticas, Shostakovich consagrou-se como o sinfonista russo por excelência. Ao longo de sua carreira, recebeu altas condecorações governamentais e ocupou cargos de destaque. Mas também teve muitos trabalhos censurados, foi levado a tribunais populares e sofreu severas punições. Shostakovich estabeleceu relações contraditórias com o Regime, dubiedade que se manifesta em suas quinze sinfonias com a estratificação de dois discursos distintos – há uma voz grandiloquente, exterior e heroica; ao lado de outra, íntima, meditativa e austera.

 

Desde o início de sua trajetória, Shostakovich quis dar continuidade à tradição musical russa que admirava no realismo de Mussorgsky e nas orquestrações de Tchaikovsky. Mas buscava um novo idioma. Nos anos de 1920, a política de abertura cultural do governo de Lenin permitia a circulação das novidades ocidentais, e Shostakovich filiou-se à Associação para a Música Contemporânea, fascinado pelo atonalismo livre, pelo serialismo, pelo jazz, pelo uso sistemático de dissonâncias e pelos ritmos complexos das danças camponesas. Suas quatro primeiras sinfonias refletem o desenvolvimento desse experimentalismo vanguardista.

 

O advento do stalinismo sinalizaria outros rumos para o compositor que, em 1936, foi declarado “inimigo do povo” e forçado a se retratar publicamente. As sinfonias seguintes traduzem seu inevitável propósito – sincero ou simulado – de se submeter aos ideais de inteligibilidade e simplicidade neoclássicas preconizados pelo Comitê Central. Por outro lado, registram a consolidação de uma linguagem extremamente pessoal, pois Shostakovich procura um idioma especificamente russo, facilmente compreensível, mas com ousadas aquisições contemporâneas. Atinge assim os limites extremos de um expressionismo ultrarromântico, de caráter frequentemente heroico e de grande apelo socializante.

 

Shostakovich começou a escrever sua última sinfonia gravemente enfermo, em tratamento médico na cidade de Kourgane e, nessas circunstâncias, idealizou uma obra cujo plano geral representasse (sem intenções descritivas ou programa literário) uma reflexão sobre as diferentes fases da vida de um homem – o Ciclo da Vida. Sob esse aspecto, essa sinfonia forma um díptico com sua antecessora, a Sinfonia nº 14, cujo tema é a Morte, vista como o aniquilamento total, conforme os textos selecionados dos poetas Lorca, Apollinaire, Küchellbecker e Rilke.

 

Na Sinfonia nº 15, Shostakovich relembra, sem mágoa ou rancor, seu passado e sua obra. São frequentes, ao longo da peça, reminiscências e citações de outros compositores e do próprio Shostakovich. Apesar do caráter meditativo ou francamente irônico de certos trechos, a sinfonia mantém o clima geral de sábia serenidade. No plano formal, ao lado do emprego de técnicas vanguardistas ocidentais, Shostakovich retoma o contorno clássico de quatro movimentos, alternando dois alegretos e dois adágios.

 

O primeiro Allegretto inicia-se evocando a Infância, segundo a proposta temática da sinfonia. O solo saltitante da flauta abre as portas do mundo dos brinquedos, e o fascínio das estórias bem contadas surge com a citação do Guilherme Tell, de Rossini, em recorrentes e alegres fanfarras. O Adagio introduz sombrio coral nos metais e seu desenvolvimento apresenta vários solos: o do violoncelo possui tema dodecafônico e caráter meditativo; segue-se uma breve resposta do violino; depois, o trombone intervém com seu discurso recitativo acompanhado pela tuba. No final do movimento, após acordes de metais marcados pelos tímpanos, os fagotes introduzem, sem interrupção, o próximo Allegretto. Trata-se de um irônico scherzo, com a melodia dodecafônica do clarinete sobreposta ao fundo das obsessivas quintas dos fagotes. O movimento é todo em staccati e a economia da orquestração parece reduzir a música a seu esqueleto. No último Adagio, a escolha do andamento lento para finalizar a sinfonia inevitavelmente referencia a Patética de Tchaikovsky. Outras citações rememoram Wagner (Tristão e Isolda, O crepúsculo dos deuses) e obras do próprio compositor. Fechando o Ciclo da Vida, a Coda reencontra o mesmo tema do primeiro movimento, agora delicadamente apresentado nos arabescos da celesta. Assim, as recordações da infância concluem, serenamente, a última sinfonia de Shostakovich.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado.

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