Concerto para flauta e harpa, K. 299

Wolfgang Amadeus MOZART

Os muitos concertos de Mozart encontram-se entre as mais perfeitas realizações sinfônicas do século XVIII. Constituem, ao lado de suas óperas, o melhor de sua expressão pessoal e uma contribuição inigualável para a Música. A aproximação com a ópera torna-se inevitável, pois os belos concertos de Mozart possuem as mesmas qualidades que o fazem um genial compositor de cena. Essas obras instrumentais, repletas das rápidas mudanças de situação e da vivacidade de ação que encontramos nos seus personagens operísticos, evidenciam o notável senso dramático do compositor. O caráter vocal das melodias mozartianas e as intervenções dos instrumentos solistas associam-se facilmente ao discurso de um personagem teatral.

 

Os concertos para solistas foram muito apreciados no século XVIII. Nada mais natural que Mozart, desde criança um célebre virtuose, cedo cultivasse o gênero. Ao completar onze anos, já escrevera quatro para piano. E continuou compondo concertos durante toda sua vida; na maioria das vezes, obras circunstanciais, sob a pressão de exigências e encargos impostos pelo mecenato aristocrático ou pela alta burguesia frequentadora dos recitais pagos. Acostumado ao sucesso, Mozart procura agradar ao público e muitas de suas criações rendem-se ao chamado estilo galante, deliberadamente marcado pelos apelos mundanos típicos de uma sociedade resistente às inovações artísticas. Mesmo com tais limitações, a forte personalidade do gênio, embora tolhida em sua liberdade criadora, impõe-se nessas obras circunstanciais, dando-lhes de um encanto especial.

 

Entretanto, Mozart afastou-se cada vez mais do gosto ditado pela moda. É curioso e trágico que ele tenha se servido de um gênero tão popular para confidenciar seus sentimentos mais íntimos e realizar audaciosas inovações. A reação do público foi de incompreensão e indiferença crescentes. Os dez derradeiros anos da vida de Mozart marcam-se pela instabilidade econômica, dívidas, às vezes a mais penosa miséria e pelas intrigas de rivais invejosos. Mas vêem também nascer muitas obras-primas definitivas, ímpares em beleza e profundamente humanas. Lúcido em sua verdade de criador, Mozart não retrocedeu – os últimos Concertos para Piano e o Concerto para Clarinete (composto dez semanas antes da morte do compositor) possuem uma beleza transcendente e serena. Neles, o gênio alcançou os pontos mais altos de sua produção, entre os preciosos tesouros artísticos da humanidade.

 

No dia 23 de setembro de 1777, Mozart deixava Salzburgo, em mais uma tentativa de se livrar dos estreitos limites musicais de sua cidade natal. O destino é Paris. Tem vinte e dois anos e uma grande bagagem musical. Quando criança, conquistara a capital francesa; mas Mozart não é mais o menino prodígio que provocava entusiasmo incondicional. O pai protetor permanecera em Salzburgo e a mãe, que o acompanha nesta viagem, morre em Paris, longe de casa. Mozart continua compondo incansavelmente. Ganha a vida realizando concertos mal remunerados e dando aulas para aristocratas. Entre suas alunas, a filha do Duque de Guines era uma excelente harpista. O duque tocava flauta muito bem e encomendou a Mozart um concerto para os dois instrumentos. Encarregado de escrever um simples entretenimento social, sem outra pretensão que a de oferecer aos ouvintes um prazer imediato, Mozart criou uma jóia de grande encanto. O primeiro movimento, Allegro, caracteriza-se pelos diálogos dos solistas entre si e com a orquestra. Há um evidente apelo virtuosístico nos trechos de grande velocidade, enquanto a escolha dos timbres orquestrais (preocupação atípica para sua época) define e individualiza as melodias em sedutora ambientação sonora. O segundo movimento, Andantino, é um idílio sonhador e terno. No Rondó final, o tema principal possui um caráter de dança, como uma alegre gavotte francesa. Sempre apreciado pelo público, esse delicado concerto demonstra a capacidade de Mozart de adaptar-se ao gosto amável da aristocracia francesa, acrescentando-lhe a ciência e a delicadeza de seu estilo pessoal.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor de Música da UEMG, autor do livro Músico, doce músico.

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