Berenice: Abertura, HWV 38

Georg Friedrich HAENDEL

Embora talvez hoje eclipsado, especialmente nos meios sinfônicos, por seu contemporâneo Johann Sebastian Bach, o nome de Georg Friedrich Haendel é unânime como representante dos mais significativos da Escola Barroca Alemã. No entanto, diferentemente de Bach, Haendel e sua música têm uma dimensão muito mais “cosmopolita”. A biografia do compositor o atesta: Haendel viveu durante algum tempo na Itália, onde travou contato direto com nomes do porte de Alessandro Scarlatti, Domenico Scarlatti, Arcangelo Corelli, Benedetto Marcello, dentre outros. Ao final da vida, depois de sucessivas (e bem-sucedidas) viagens à Inglaterra, toma definitivamente a cidadania inglesa. Isso se reflete em sua linguagem, que concilia, sob um determinado ponto de vista, diferentes correntes nacionais da música barroca, sem deixar de ser autêntica. Apesar de profundamente religioso, sua música não traduz a ânsia pietista da morte, como frequentemente em Bach. Ao contrário, a música de Haendel sempre deixa entrever uma alegria jubilosa. Se se pudesse fazer uma analogia temerária, poder-se-ia dizer que a música de Haendel é mundana, sem nunca ser frívola, ao passo que a de Bach é austera, sem nunca ser rígida. Por isso mesmo, a música de Haendel, a despeito de sua grande versatilidade em todos os gêneros musicais do Barroco, parece estar mais à vontade no teatro que na Igreja. Mesmo em suas obras sacras mais importantes (dentre as quais O Messias) percebe-se o modelo já experimentado em suas investidas na ópera, sobretudo naquelas de linguagem italiana. Assim, diferentemente de Bach, a música de Haendel sempre se dirige a um público grande e heterogêneo. Advém, daí, por exemplo, a gênese de um tipo de oratório que, florescendo na Inglaterra, tornou-se original e inimitável.

 

Haendel não escapa à regra da prodigalidade produtiva do século XVII. Dessa forma, todos os gêneros principais do Barroco lhe foram objeto de trabalho, tanto na música vocal quanto na instrumental, tanto na música sacra quanto na profana. Dessa obra extensa, despontam cerca de quatro dezenas de óperas de modelo italiano, compostas entre 1705 e 1741. Berenice foi composta em 1709, quando o compositor ainda residia na Itália. Originalmente intitulada Berenice, Regina d’Egitto, narra a história de Cleópatra Berenice, filha de Ptolomeu IX, por sua vez protagonista de outra ópera do compositor, intitulada Tolomeo.

 

Seguindo a tradição barroca da overture, cujo conceito habitualmente se aderia ao da suíte de danças, sendo, portanto, trecho puramente instrumental, a abertura de Berenice não se afasta dos procedimentos correntes do gênero: em primeiro lugar, um trecho lento, solene, estruturado sobre ritmos pontuados, que é marca registrada da overture française, seguido de um fugato vivaz, elaborado em contraponto imitativo. A junção dessas duas partes constitui a “abertura” propriamente dita. No entanto, tomada em sua acepção mais “completa”, esses dois trechos são não raro seguidos de outras tantas danças (no caso específico de Berenice, um minueto e uma giga), sempre contrastantes em andamento e caráter, bem ao gosto da estética barroca. A praxe nos concertos sinfônicos, porém, é executarem-se somente as duas primeiras partes, que, afinal, são a própria abertura.

 

Se a linguagem de determinados compositores pode ser bem definida em traços gerais por uma única obra, ou por uma pequena parcela de sua produção, talvez isso seja difícil de se aplicar a Haendel. Embora O Messias seja a sua obra mais conhecida, o todo orgânico de sua enorme produção parece ser dotado de certa unidade, que lhe revela o espírito cosmopolita e que se quer sempre acessível. Berenice (e sua abertura), nesse sentido, revela uma porção desse todo, deixando entrever a forte personalidade musical de Haendel e sua originalidade criativa.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.

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