Ce qu’on entend sur la montagne

Franz Liszt

(1848/1849 | Versão final, 1854)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

Em setembro de 1847, após um concerto em Yelisavetgrad (hoje Kirovohrad, Ucrânia), Liszt colocou um ponto final em uma das carreiras de concertista mais bem-sucedidas de toda a história da música e se preparou para iniciar uma nova etapa em sua vida. Aos trinta e seis anos ele assumia o cargo de Kapellmeister (Mestre de Capela) na pacata Weimar, cidade onde outrora tinham vivido e morrido Goethe e Schiller. Entre suas obrigações estava a de dirigir a orquestra da corte nos concertos oficiais, assim como a de dar aulas a membros da nobreza. Em uma cidade com fortes tradições teatrais, reger uma orquestra com músicos incompetentes e pouco dispostos não era tarefa fácil. Mas sobrava-lhe tempo para lecionar piano e dedicar-se à composição, apesar das dificuldades. Há anos ele desejava pôr em prática ideias musicais antigas que levava por toda parte. Uma delas era a fusão da música com a literatura. Não, porém, no sentido de uma aliança entre as duas, em que a música apenas ilustrasse o universo literário. Liszt desejava que a música tivesse o status da poesia. Ou seja, do texto literário ele tomaria a essência, e a trabalharia em linguagem puramente musical. No final, teríamos apenas a música, pois que nenhuma obra musical sem qualidade artística permaneceria viva apenas por ter tido, como pano de fundo, um bom programa literário.

 

Mas quando Liszt chegou a Weimar ainda não sabia como realizar esse plano. Ce qu’on entend sur la montagne (O que se escuta no alto da montanha), também conhecido como Bergsymphonie (Sinfonia da montanha), o primeiro de seus poemas sinfônicos, é uma das inúmeras obras de Liszt que comportam a ideia de conexão com uma fonte extramusical. Os primeiros esboços de Ce qu’on entend… datam do início dos anos 1830; vários motivos (temas) foram concebidos em 1847, e a primeira versão ficou pronta em 1848.

 

Ce qu’on entend sur la montagne foi inspirado no poema de mesmo nome, quinto poema da coleção Les feuilles d’automne (As folhas do outono), de Victor Hugo, publicada em 1831. Liszt e Hugo eram amigos havia décadas. Nos anos 1850 Victor Hugo lhe cunharia o carinhoso apelido de “Orfeu de Weimar”.

 

No poema de Victor Hugo, o narrador pergunta ao leitor se ele alguma vez subiu uma montanha na borda do oceano e se, na quietude e no silêncio, parou para escutar o som que nos chega aos ouvidos. Revela-nos então que, lá de cima, se escutam duas vozes:

 

Uma vinha do mar; canto de glória! hino de felicidade!
Era a voz das ondas que conversavam entre elas.
A outra, que se elevava da terra onde estamos,-
era triste; era o murmúrio dos homens.
E nesse grande concerto, que cantava dia e noite,
cada onda tinha a sua voz e cada homem, seu ruído.

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Uma dizia: NATUREZA! e a outra: HUMANIDADE!

 

A essência do poema está na dualidade entre a voz da Natureza, “alegre e pacífica”, e a da Humanidade, “como a dobradiça enferrujada de uma porta do inferno” que o tempo todo grita injúrias e blasfêmias. Liszt parte dessa mesma essência para compor seu poema sinfônico. A música se inicia com uma longa introdução (Poco allegro). Aos poucos conseguimos distinguir as vozes: primeiramente a Natureza e depois os Homens, cantando seus temas bem distintos. A primeira parte termina com trombones e tuba (seguidos das madeiras e, posteriormente, das cordas) executando um tema de caráter religioso (Andante religioso) que, em razão do adjetivo, nos faz pensar na voz do Criador: “Como esse grande leão que hospedou Daniel, o oceano por momentos abaixava sua alta voz e eu julgava ver, no poente em chamas, sob sua juba dourada, passar a mão de Deus” (alusão de Hugo a Daniel na caverna dos leões, no mesmo poema). Inicia-se a segunda seção (Allegro moderato – Alla breve) e, aos poucos, chega-nos o conflito das duas vozes que, à medida que o tempo passa, fica cada vez mais tempestuoso (vozes “que cantam ao mesmo tempo o canto universal”, “que se mesclam”, mas que ainda somos capazes de distinguir, como “duas correntes que se cruzam sob a onda”). O confronto nos leva a lutas violentas, bem como a alguns breves momentos meditativos. E, ao contrário do poema de Hugo, que possui um final pessimista, Liszt fecha sua obra com o tema religioso (Andante religioso), trazendo um pouco de esperança ao interminável conflito entre a Humanidade e a Natureza.

 

Dedicado à princesa Carolyne de Sayn-Wittgenstein (“àquela que é a companhia de minha vida, o firmamento de meus pensamentos, a oração viva e o céu de minha alma”), Ce qu’on entend sur la montagne é o mais longo poema sinfônico de Liszt e, provavelmente, de todo o século XIX. A primeira versão foi apresentada pelo compositor, em Weimar, em 1850. Liszt ainda apresentaria uma segunda versão em 1853 e, a versão final, em 1857.

 

Guilherme Nascimento
Compositor, Doutor em Música pela Unicamp, professor na Escola de Música da UEMG, autor dos livros Os sapatos floridos não voam e Música menor.

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