Concerto para violoncelo, op. 3

Paul HINDEMITH

Lugar comum em qualquer tendência de vanguarda é o desejo de apresentar o novo, mesmo que para isso seja necessário vislumbrar o passado. O vanguardista, ao buscar sua imagem no espelho, vê também o que está por trás refletido nele. O artista inquieto, na busca do próprio estilo, vê, em suas raízes e em sua vontade, o caminho para o ato inovador. Na primeira década do século XX, o romantismo musical assistira à sua decadência, levada a cabo pelos movimentos impressionista, expressionista e neoclassicista. Dos três, o último foi o único a admirar as formas clássicas do passado, revalidando-as com novos processos composicionais. Ao ver ressurgir o clássico no neoclássico, a história da música já tivera um período apreciativo suficiente para julgar as velhas formas do barroco e a antiga escrita contrapontística (a técnica do contraponto remete à idade média musical e consiste na combinação de duas ou mais linhas melódicas submetidas a regras, por sua vez aplicadas ao tratamento das dissonâncias e consonâncias). No neoclassicismo de Hindemith, o sentido de consonância e tonalidade é substituído pela alquimia de um contraponto linear, baseado em relações intervalares mais livres e que resultam em harmonias mais complexas.

 

O neoclassicismo musical não nasceu sozinho, veio de mãos dadas com movimentos artísticos que fervilharam na Alemanha entre 1919 e 1933, reunidos sob a insígnia “nova objetividade”. Bertold Brecht no teatro, Walter Gropius e o Bauhaus na arquitetura e Paul Hindemith na música foram os grandes expoentes desse movimento de linhas óbvias e límpidas. Baseado também em ideais sociopolíticos, o movimento foi delimitado por dois acontecimentos marcantes: a criação da Constituição de Weimar em 1919, primeira a expressar ideais democráticos, e a sua anulação em 1933, quando da nomeação de Hitler como chefe do Estado Maior. Hindemith, cujo pai morrera em combate na 1ª Guerra, foi perseguido por ser abertamente contrário ao nazismo e, durante a 2ª Guerra, buscou exílio nos Estados Unidos. Lecionou na Universidade de Yale entre 1940 e 1953, ano no qual retornou ao seu país natal.

 

O Concerto para violoncelo foi composto no decorrer de 1940, em seu segundo ano de exílio, período no qual se autodenominava um músico apátrida. Dois dos maiores violoncelistas da época, Emanuel Feuermann e Gregor Piatigorsky, também exilados, pleitearam a estreia dessa magnífica obra. Hindemith escreveu que não tinha nenhum intérprete em mente: “eu só estava interessado em tentar escrever uma peça para violoncelo como o Concerto para violino”, de 1939. A estreia do Concerto para violoncelo ocorreu em Cambridge, Massachusetts, em 1941, com Piatigorsky como solista e Serge Koussevitzky à frente da Orquestra Sinfônica de Boston. O compositor John Cage, presente na ocasião, registrou suas impressões, atribuindo à obra um conteúdo programático; observou que, nela, “as relações musicais também seriam relações entre pessoas. Fato evidenciado, em especial, na última parte, onde a orquestra toca de modo marcial, ao passo que o violoncelo permanece sozinho e afastado, poético e sem marchar, posto que dessa vez representa um outro ponto de vista. O violoncelo afirma seu individualismo com intensidade crescente até o último momento possível. Torna clara a necessidade de escolher entre a insanidade e a conformidade. O destino segue implacável e o violoncelo se torna parte subserviente de uma orquestra esmagadora.”

 

Marcelo Corrêa
Pianista, Mestre em Piano pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor na Universidade do Estado de Minas Gerais.

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