A ilha dos mortos, op. 29

Sergei RACHMANINOV

(1909)

Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 6 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas.

 

Em 1906, fugindo da densa atmosfera política de Moscou e buscando refúgio onde pudesse compor com tranquilidade, Rachmaninov deixou a Rússia e mudou-se, com a família, para a Alemanha. Na pacata cidade de Dresden, onde escolheu morar, ele conheceu o editor Nikolai Gustavovich Struve, que lhe sugeriu a composição de um poema sinfônico sobre o quadro A ilha dos mortos, de Böcklin. Ele sabia que Rachmaninov, quando compunha, tinha sempre em mente um livro, um poema ou um quadro.

 

O pintor suíço Arnold Böcklin (1827-1901), um dos maiores expoentes da pintura germânica do século XIX, encontrava alegria apenas nas paisagens ensolaradas da Itália. Sua vida, marcada por perdas familiares, depressão e pobreza, contaminou sua arte consideravelmente. Sua pintura foi sombria e cheia de alusões a mundos estranhos, onde a morte costumava ocupar um lugar de destaque. Em 1880, em Florença, a jovem viúva Marie Berna encomendou-lhe um quadro que possuísse uma atmosfera de sonho. Böcklin pintou-lhe sua obra mais famosa, A ilha dos mortos, uma cena onde vemos um grande bloco rochoso desolado, com alguns ciprestes apontando ao céu, cercado por águas escuras e profundas, e um barco a remo que se aproxima, contendo uma figura em pé, vestida de branco, e um objeto que parece ser um caixão. Nos anos seguintes Böcklin pintaria mais quatro versões da cena.

 

Rachmaninov ficou extremamente impressionado quando viu, pela primeira vez, uma reprodução do quadro, em preto e branco, em Paris, no verão de 1907. Quando, no início de 1909, Struve sugeriu-lhe uma composição inspirada em A ilha dos mortos, Rachmaninov logo aceitou, pois aquela imagem o perseguia por um ano e meio. Ao saber que uma das versões do quadro encontrava-se em Leipzig, a cem quilômetros de Dresden, ele correu para conhecê-la. Mas ver o original de perto não foi o bastante para superar o impacto da primeira visão em Paris: “Eu não me senti movido pela cor da pintura. Se eu tivesse, primeiramente, visto o original, talvez não tivesse composto a minha Ilha dos Mortos. Eu prefiro o quadro em preto e branco”.

 

Algumas características da música chamam logo a atenção: a incrível unidade estilística e formal, a orquestração densa e meticulosa e o uso de sonoridades particularmente escuras que asseguram uma permanente atmosfera de devoção e mistério. Aqueles familiarizados com o antigo missal romano conseguirão perceber uma clara referência à morte, nos fragmentos do tema gregoriano do Dies irae, que por séculos foi utilizado na Missa de Réquiem. Embora contenha momentos relativamente agitados, a música desenvolve-se, de maneira geral, suavemente.

 

Os primeiros esboços de A ilha dos mortos datam de janeiro de 1909. Embora o processo composicional de Rachmaninov fosse lento, a composição fluiu com incrível facilidade e, em abril, a obra estava finalizada. A estreia aconteceu em Moscou, no dia 18 de abril (1º de maio no calendário gregoriano) de 1909, com a Sociedade Filarmônica de Moscou, sob a regência do compositor.

 

Guilherme Nascimento
Compositor, Doutor em Música pela Unicamp, professor na Escola de Música da UEMG, autor dos livros Os sapatos floridos não voam e Música menor.

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