Sinfonia nº 3 em Mi bemol maior, op. 55, “Eroica”

Ludwig van BEETHOVEN

Há um consenso crítico dividindo a obra de Beethoven em três grandes fases. Tal divisão foi sugerida, em 1828, por J. Schlosser, primeiro biógrafo do compositor; e tornou-se uma referência, quando adotada por Wilhelm von Lenz, em 1852. Embora mascarando evidentes conexões entre obras de diferentes períodos, essa divisão tripartida continua didaticamente consagrada, apoiando-se muito em declarações do próprio Beethoven que, em sua trajetória, sempre se manifestou disposto a enveredar por novos caminhos.

 

O primeiro período corresponde aos primeiros anos vienenses do compositor. O jovem de 22 anos, chegado de Bonn com uma boa bagagem musical, torna-se aluno de Haydn (o sonho de estudar com Mozart perdera-se, dez meses antes, com a morte de seu “primeiro deus musical”). Ao dedicar a Haydn suas primeiras sonatas publicadas, Beethoven situa-se como legítimo herdeiro dos dois gênios que admirava. É quase total a ausência de referências suas a outros compositores contemporâneos e, por mais que ele próprio reconhecesse e declarasse sua dívida enorme para com Haydn e Mozart, não se via apenas como um talentoso imitador. Estudando com afinco a obra de seus grandes modelos, Beethoven, desde o início, foi um artista original, corajoso, contemplando amplos horizontes. As obras do primeiro período apresentam esse jovem pianista e compositor confiante em seu talento, conquistando a admiração de seus patronos e do público vienenses. Culminam com os primeiros Quartetos de Cordas, op. 18, e com as duas primeiras sinfonias.

 

O segundo período beethoveniano coincide com a primeira crise séria de surdez. O compositor tem pouco mais de trinta anos. Contemporâneo do Werther, de Goethe, pensa em suicídio, mas resolve viver para sua arte, conforme as declarações dramáticas contidas no Testamento de Heiligenstadt. Beethoven inicia, por essa época, o uso regular de cadernos de rascunhos, mudança de método de trabalho que compensava, com o excesso de controle e supervisão, a frustração provocada pela surdez. Essa é a fase central e mais longa de sua carreira e a ela pertencem suas composições mais reconhecidas, hoje, pelo grande público. Entretanto, para os contemporâneos do compositor, tais obras traziam inovações que foram motivo de assombro e incompreensão. Só se impuseram e se consagraram definitivamente por se cristalizarem em uma sequência impressionante de obras-primas (as Sinfonias, da Terceira até a Nona; os dois últimos Concertos para Piano e o Concerto para Violino; Fidélio, a única ópera; as mais célebres Sonatas para Piano; os Quartetos Razumovsky; a Música de Câmara com Piano, incluindo as sonatas para violino op. 96, para violoncelo op. 69 e os três últimos trios). Com essa segunda fase, Beethoven tornou-se, a partir de meados do século XIX, o centro do cânone da música de concerto, estabelecendo uma nova referência musical como padrão de perfeição formal e emocional.

 

Nos últimos anos de vida, em suas obras do chamado terceiro período, o grande artista ainda reformulou lentamente sua visão musical. Serenamente desvencilhava-se da tendência ao retórico, aos efeitos fáceis e buscava sua voz mais íntima e atemporal. As últimas obras de Beethoven permaneceram incompreendidas por seus contemporâneos. Mas realizaram uma complementação necessária e inevitável de sua trajetória, transformando-o em um artista universalmente compreendido e amado.

 

A Terceira Sinfonia, esboçada em 1802 e concluída em 1804, tem uma extensão maior do que qualquer sinfonia até então composta. Traz para o campo sinfônico as conquistas anteriores do compositor, manifestas principalmente em algumas sonatas e variações para piano. Cada movimento da Sinfonia desenvolve-se em grande escala, repleto de contrastes e modulações, exigindo do público uma concentração sem precedentes. Por outro lado, para conferir unicidade a uma obra tão longa, Beethoven relaciona sutilmente as várias ideias musicais nela contidas e amplia inusitadamente o potencial de desenvolvimento da forma sonata sinfônica. As novidades eram tantas que as primeiras críticas julgaram-na fatigante, interminável e desconexa!

 

O primeiro movimento, Allegro con brio, abre mão de qualquer introdução – após dois acordes tocados imperativamente pela orquestra, o primeiro tema aparece, em piano, nos violoncelos acompanhados pelos violinos e violas. Esse motivo, formado pelas notas do acorde, será retomado, ao final do movimento, anunciado pelas trompas com um caráter de hino triunfal.

 

A Marcha funebre: adagio assai, tão monumental como o trecho anterior, é o movimento mais célebre da Sinfonia. Trata-se de um poema sombrio, oração meditativa e profunda, em dó menor (tom trágico por excelência para Beethoven).

 

O Scherzo: allegro vivace, com o dinamismo irresistível de seu impulso rítmico, não possui nenhum vestígio do caráter dançante dos antigos minuetos sinfônicos.

 

O Finale: allegro molto conclui a sinfonia em clima apoteótico. Adota uma forma muito particular de variações – articuladas em variados processos composicionais, breves ideias apresentam-se sobre um motivo muito simples, que lhes serve de acompanhamento contrapontístico (pensa-se no basso ostinato de uma passacaglia).

 

O título da Terceira Sinfonia tem uma estória curiosa: foi primeiramente dedicada a Napoleão Bonaparte, tendo seu nome como subtítulo. A simpatia de Beethoven pelos princípios humanitários da Revolução Francesa era profunda, e o compositor via no então Primeiro Cônsul francês o verdadeiro representante desses ideais. Quando Napoleão se fez coroar imperador, Beethoven, decepcionado e enfurecido, rasurou iradamente a dedicatória substituindo-a pelo novo título de Sinfonia Heroica.

 

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor de Música da UEMG, autor do livro Músico, doce músico.

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