Sinfonia nº 4, op. 29, “A inextinguível”

Carl Nielsen

(1914/1916)

Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 3 oboés, 3 clarinetes, 3 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos e cordas.

 

O próprio compositor dinamarquês Carl Nielsen batizou de “A inextinguível” sua quarta obra do gênero sinfônico. Não por sugerir a representação objetiva de uma sinfonia sem fim, mas pela expressão musical de algo que não pode ser dominado: a continuidade da vida. Ao iniciar a obra, em 1914, escreveu a um amigo: “posso lhe dizer que estou bem iniciado em um novo grande trabalho orquestral, uma espécie de sinfonia em um só movimento, para evocar tudo o que sentimos e pensamos sobre o conceito de vida em seu significado mais profundo”. Nielsen compôs um conjunto de seis sinfonias, as quais compreendem o melhor de sua produção, além das obras de câmara, concertos e óperas. Nas suas sinfonias, não raro nos deparamos com movimentos batizados pitorescamente: allegro orgulhoso, allegro colérico, allegro fleumático, allegro sanguíneo, allegro expansivo, andante melancólico e o curiosíssimo proposta seria – assim mesmo, em italiano.

 

Os anos que abarcam a elaboração da Sinfonia Inextinguível – 1914 a 1916 – foram os únicos nos quais Nielsen pôde se dedicar quase que exclusivamente à composição: em 1914 ele deixara o cargo de regente assistente do Teatro Real de Copenhagen e somente em 1916 tornar-se-ia professor da Academia Real de Música da Dinamarca. Nielsen valia-se da maturidade de sua carreira como compositor e criou o seu “melhor trabalho dos últimos anos”, em sua própria opinião. A despeito do longo prazo para compor a obra, o autor só finalizou a Sinfonia cinco dias antes da primeira apresentação, ocorrida em janeiro de 1916. Para a ocasião, foi impressa uma nota de programa baseada nos pensamentos de Nielsen acerca do conteúdo conceitual da sinfonia: “Música é vida. Logo, um único som no ar ou através do espaço é resultado da vida em circulação; é por isso que a música e a dança são as expressões mais imediatas da vontade para a vida. A sinfonia evoca as fontes mais primitivas da vida e do sentimento de viver. (…) Mais uma vez: música é vida, e como ela, inextinguível”.

 

A dramática interação narrativa dos temas e motivos melódicos em A Inextinguível deve-se, em grande parte, à eclosão da Primeira Guerra Mundial. Mesmo não envolvendo diretamente Nielsen e seu país, a guerra afetou-os profundamente. Nielsen, indignadamente, criticou a desfiguração do movimento nacionalista causada pela guerra: “o sentimento pátrio, que até aqui tinha sido considerado como algo de nobre e belo, transformou-se numa espécie de doença espiritual que devora tudo com ódio enlouquecido”. Certa vez denominada “apoteose do ritmo”, a Sinfonia Inextinguível tem na utilização dos tímpanos uma de suas características sonoras – e visuais – mais importantes. Nielsen solicitou que fosse impressa na partitura uma disposição pouco usual para os dois conjuntos de tímpanos, os quais deveriam ser postos à frente da orquestra em oposição diametral: “tenho uma ideia para um duelo entre dois conjuntos de tímpanos”, escreveu a um amigo, “isso tem a ver com a guerra”. Os tímpanos, quando não interrompem brutalmente a continuidade das frases melódicas, fornecem caráter marcial à obra e, segundo o autor, devem “manter certo caráter ameaçador, até o final, mesmo quando tocam em piano”.

 

As composições de Carl Nielsen refletem uma dualística formação musical. Uma formação rústica, realizada no meio rural pobre, como músico de banda, tocando diversos instrumentos de metal e iniciando os estudos de piano e violino com o pai, músico amador e pintor de paredes. Outra, no então recém-fundado Conservatório Real de Copenhagen, onde, com ajuda financeira local, teve uma apropriada formação, alicerçada em autores alemães, como Bach, Schumann, Beethoven, Wagner e Brahms.

 

Nielsen repudiava o sentimento romântico em suas obras e considerava desnecessários certos refinamentos da escrita orquestral. Ele optou por uma estética composicional desafetada, “que seja como uma espada tão pesada quanto cortante e fácil de compreender”, tomando suas palavras. Para isso, tratou a orquestra como uma reunião de grupos em contraponto, técnica conhecida como polifonia de grupo, que propicia uma melhor inteligibilidade das sobreposições melódicas. Podemos afirmar que a técnica composicional de Nielsen evoluiu na medida em que se tornou mais livre e contrapontística. Uma qualidade desse desprendimento é o uso da tonalidade progressiva, que permite a conclusão de uma obra em tonalidade diferente da de seu início. Sob esse aspecto não é acertado delimitar o tom da Sinfonia Inextinguível, uma vez que ela se inicia em ré menor e avança para uma conclusão em Mi maior.

 

A obra do compositor Carl Nielsen vem sendo descoberta recentemente, revelando a força indomável e fecunda de um artista progressivo que uniu técnica e natureza. Não há uma composição sua que não revele algo novo e criativo. Considerado pai da música moderna da Dinamarca, Nielsen é uma personalidade absolutamente original, e sua música se perpetuará, fazendo jus à sinceridade de seu espírito.

 

Marcelo Corrêa
Pianista, Mestre em Piano pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor na Universidade do Estado de Minas Gerais.

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