Tocata e Fuga em ré menor

Johann Sebastian BACH

Orquestração de Leopold Stokowski

 

A unanimidade que envolve o nome de Johann Sebastian Bach dificulta quaisquer comentários à sua obra. De fato, há mesmo quem considere a História da Música Ocidental em duas grandes fases: antes e depois de Bach. Por radical e tendencioso que possa ser esse posicionamento, é certo que ele incita à reflexão. Há, aí, uma aparente contradição: por um lado, Bach não propôs, como homem ou como músico, nenhuma inovação na linguagem musical ou em sua estética. Por outro lado, num ponto diametralmente oposto, Bach tampouco esboçou qualquer tipo de reação às novas tendências estéticas que a linguagem musical abraçava quando ele estava ainda em vida e em plena atividade produtiva. Essas tendências, diga-se de passagem, curiosamente têm como um de seus nomes exponenciais o de seu próprio filho, Carl Philipp Emmanuel Bach e, embora não tenham sido abraçadas pelo pai, é possível que gozassem de seu respeito e provavelmente de sua admiração. O fato é que Johann Sebastian Bach, mesmo bem antes da data de seu falecimento, em 1750, ainda compunha numa linguagem que estava “defasada”, por assim dizer, em relação às mudanças substanciais pelas quais a Música do Ocidente já passava em suas formas de expressão. Bach foi uma espécie de testemunha ocular no limite entre duas eras, mas não tomou partido revolucionário nem partido reacionário. É justamente nessa aparente contradição, porém, que se justifica posicioná-lo como marco estético e historiográfico da Música Ocidental: se Bach não propõe as mudanças nem reage a elas, ele é, no entanto, uma espécie de sintetizador (e sua obra, portanto, uma espécie de síntese) de toda uma tradição musical que remonta ao nascimento da Polifonia, ainda na Idade Média, e que deságua na Linguagem Barroca, da qual se nutriu e que ele abraçou como única maneira possível de expressão artística pessoal. Isso, porém, não explica sequer minimamente a qualidade de sua obra, monumental no sentido radical do termo. Elaborar qualquer tipo de juízo sobre isso seria tanger no imponderável.

 

Eis aí, contudo, mais uma aparente contradição no que se refere a Bach: sua obra, posto que monumento do Ocidente, foi concebida e gerada, em sua quase totalidade, não como tal, mas “para a maior Glória de Deus”, nas palavras do próprio compositor. Na verdade, o mais de sua produção artística sempre teve uma finalidade funcional, seja a serviço da prática religiosa, seja com fins didáticos. Não deixa de ser curioso observar que obras tidas hoje como a mais fina música de concerto, a exemplo de suas cantatas ou suas Paixões, tenham sido utilizadas, em sua origem, pelo próprio Bach, como instrumento para o serviço religioso protestante. De forma análoga, grande parte de sua obra instrumental (quase a metade da qual foi dedicada ao órgão) tinha uma finalidade manifestamente didática: as Invenções a duas e três vozes, o Cravo Bem Temperado, as séries de suítes para teclado, as quatro partes do Klavierübung (em que se encontram, dentre outras obras, nada menos do que o Concerto Italiano e as Variações Goldberg) e o Orgelbüchlein, transformado hoje em vade mecum de qualquer organista. Nesse rol imenso de composições e gêneros distintos, são proporcionalmente poucas as obras instrumentais que escapam seja a essa finalidade, seja à prática do serviço religioso: dentre outras, os concertos, algumas obras para teclado e obras importantes para órgão, dentre as quais as grandes tocatas e fugas.

 

A Tocata e Fuga em ré menor, BWV 565, é uma dessas grandes obras cuja finalidade não se prestava nem ao culto religioso nem a intenções pedagógicas, mas tão somente ao deleite intelectual de seus pares musicistas. Há controvérsias quanto ao momento preciso de sua composição, mas é bastante provável que ela tenha sido criada entre 1703 e 1709, ou seja, no limite entre a fase de Arnstadt e a fase de Weimar. Seguindo o princípio fundamental das formas ditas livres, que despontam, no Barroco, como gêneros potenciais de expressão da música instrumental, essa tocata em particular sabe a improvisação, embora tenha sua estrutura formal e harmônica impecavelmente elaborada… Como tudo na obra de Bach. Seus episódios extremamente contrastantes e suas harmonias ousadas assombram qualquer ouvinte desavisado, mesmo aquele cujos ouvidos estejam acostumados à liberdade conferida à dissonância pela música do século XX. A fuga, posta tradicionalmente lado a lado com a tocata, no Barroco, como artifício para gerar contraste, é encarada e trabalhada, nesta obra em particular, não como forma pré-determinada, mas como técnica de composição. Isso garante ao compositor, neste caso, grande liberdade criativa, sem abandonar nunca o rigor da técnica contrapontística. Justifica-se, com isso, o final quase inusitado da obra, que, como em outros casos semelhantes da obra bachiana, abandona o procedimento fugato, fazendo-o tornar ao caráter e à atmosfera improvisatórios da tocata.

 

A transcrição, para orquestra sinfônica, feita por Leopold Stokowski, dessa obra monumental data da década de 1920 e teve sua primeira execução em 1926, pela Orquestra da Filadélfia, tendo sido gravada no ano seguinte, mas publicada somente em 1952. Ela faz parte de um conjunto de cerca de outras quase quarenta transcrições de obras de Bach. Stokowski teve formação como organista e iniciou sua carreira como tal, antes de se dedicar à regência. Vindo de uma tradição organística de base romântica, herdeiro de Mendelssohn, Liszt e César Franck, é a sonoridade do órgão romântico que Stokowski aplica à sua orquestração da obra bachiana. Isso, porém, não invalida a legitimidade e a qualidade dessa versão. Ao contrário, poder-se-ia dizer que ela tem algo do experimentalismo da própria música barroca, ela mesma desbravadora de novos caminhos formais e linguísticos que determinariam o curso da Música do porvir.

 

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Mestre em Teoria da Literatura, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Fundação de Educação Artística e da Escola de Música da UEMG.

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